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Segundo lugar (medalha de prata) no CONCURSO FRANCISCO LUZIA NETTO / AMPARO/SP com a crônica: LIQUIDADO/ visite: http://www.elianadagmar.com.br/noticias.php?nid=314
leia a crônica LIQUIDADO aqui também:
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Meus netos apreciam os relatos de meu passado. Os filhos ainda se lembram, vagamente, de passeios pela orla marítima com o sol a lhes arder as faces. Faz tempo! Restou o solo morto e a noite infinda. Acham-me um ser meio alienígena por eu ter ultrapassado meus oitenta anos de vida. Ora, viver 80 anos sempre foi considerado como um trajeto de vida longa, mas atualmente sabe-se que é cada vez mais raro um ser humano viver tanto... Tenho um bisneto que já nasceu com cara de idoso, cheio de rugas __ é o normal agora. Não são tenras rugas características dos antigos recém-nascidos, mas resultantes desta desidratação latente. Eu não me conformo com as rugas rígidas e vincadas que as crianças carregam pela vida adiante, mas a família parece não se dar conta dessa discrepância e diz que o bebê se parece com o bisavô, que se parece comigo! Lamentável...
Há quarenta anos a gente pensava que poderia faltar água pra beber. Faltou pra tudo! Restam ainda amostras que são analisadas por cientistas, mas até quando viveremos assim? Indefinidamente, creio eu. Nossos hábitos mudaram tanto... Ao acordarmos, dizemos “boa noite”, pois é à noite que passamos a maior parte do tempo acordados. O dia escaldante de sol serve para dormirmos, quando nos fechamos em nossos ambientes climatizados. Os lares mudaram. Não há mais animais de estimação: eles sujariam a casa e a higienização custa bem caro. Sem água, perdemos o hábito de beber... Quem no passado imaginaria isso? Que bastaria nos acostumarmos a não sentir sede à custa de remédios. Só os velhos, como eu, os chamam de remédios! Os mais jovens chamam-nos “soluções”. Nada há de solúvel nas soluções, que são emplastros adesivos aderentes à superfície da pele. Há “solução” para a sede, para o banho e para uma infinidade de outras necessidades, mas volto ao assunto da água... __ Sinto saudades... Relembro copos, xícaras, mangueiras, seringas, chuveiros... Tudo parte de um passado recente.
Nosso organismo foi se adaptando à umidade absorvida pela respiração. De onde vem esta umidade? Uns dizem ser da transpiração; outros, que ela vem da chuva constante, fina e fedorenta que cai eterna. Não é água que chove, é uma chuva fina e espalhada, como poeira. Nada vive dela: nem nós! Eu e minhas lembranças... Transformei-me num ser noturno e nostálgico de minha antiga Terra e nada há de romântico nisso.
Os bebês... Eles não são mais carregados na barriga das mães. Nada de bolsa d’água! Eu fico pasmo com as mães modernas, que se enojam ao saber que antigamente seriam obrigadas a “aturar” o parto normal, os fluidos, os líquidos, o sêmen da vida! Elas sentem-se “confortáveis” por não menstruarem... __ Que vida! Conseguimos transformar nosso corpo humano de 70% de água para 30%. Invertemos nossa química. Roupas e sapatos são higienizados e “lavar” é verbo em desuso. Nossos rins são limitadíssimos e nem sei por que as crianças ainda nascem com eles. Nosso sangue depende de químicas, das tais “soluções” anticoagulantes. E é por isso que estou estarrecido com esta notícia aqui no jornal... Muitas delas são estarrecedoras __ é de praxe __, no entanto essa me chocou sobremaneira!
Leio e releio desacreditando: Um grupo de pesquisadores encontrou no caminho do Pico da Neblina uma fonte suspeita e atípica. Tal fonte era de água terrena antiga, embora impura e não potável. Continuo ávido em minha leitura para saber o que aconteceu com a água descoberta na fonte. Lamenta-se a intoxicação de dois jovens cientistas, membros da expedição, que por terem respirado dos vapores da água natural (é assim que denominamos a antiga água terrena, mais ou menos, como falávamos sobre a Era Medieval quando eu era jovem). A matéria relata que um dos cientistas entrou em coma e não resistiu à concentração de água natural e faleceu em menos de doze horas, apesar dos socorros imediatos e do tratamento intensivo de desidratação por que passou. A sonda (veículo) da expedição foi inutilizada, pois a umidade danificou o material por completo. Um alerta foi dado às Forças Armadas para que auxiliassem o aterro do local insalubre, de forma que toda a água natural fosse extinta do manancial encontrado. Uma nota do Superintendente de Controle Ambiental tranquiliza a população de que não há motivos para pânico, pois semelhante acidente ambiental é improvável de se repetir.
Sinto falta de umidade, da antiga umidade. Procuro uma solução... “Estava aqui há pouco tempo! Onde eu a deixei?” Uma ideia me surge e eu a acolho como quem acolhe um pombo mundano, sujo e desvalido. Desço até o terceiro andar (normalmente, vive-se no subsolo e o primeiro andar é o da superfície), sigo por um corredor até alcançar as escadas para o armário de guardados. Encontro velhos guarda-chuvas, livros feitos de papel, fotos (também de papel), remexo mais um pouco e encontro vinis, cestos de palha artesanais... Mas onde? Procuro e acho! Tão velha a garrafinha de água mineral gasosa francesa, coisa fina, que ganhei da chefe do departamento onde eu trabalhava. Ela é tão antiga quanto minha aposentadoria. A água decerto perdeu suas qualidades, ou evaporou em parte, que importa? Decido levá-la comigo ao meu quarto. Evito aspirar a umidade climatizada dos corredores, forçando-me a uma sede saudosa. Chego ao quarto, pego o jornal e relanceio a matéria sobre o Pico da Neblina... Lágrimas não me vêm aos olhos faz tempo! Sinto tontura e muita, mas muita vontade de chorar. Sou um ancestral de 80 anos de idade que quer algo natural, nem que seja a própria morte natural... “Isso!”. Destampo a garrafa. Ela ainda tem água, pouca, mas tem. A garrafa vazia... Eu cheio de líquido, água e vida. É noite...
Há quarenta anos a gente pensava que poderia faltar água pra beber. Faltou pra tudo! Restam ainda amostras que são analisadas por cientistas, mas até quando viveremos assim? Indefinidamente, creio eu. Nossos hábitos mudaram tanto... Ao acordarmos, dizemos “boa noite”, pois é à noite que passamos a maior parte do tempo acordados. O dia escaldante de sol serve para dormirmos, quando nos fechamos em nossos ambientes climatizados. Os lares mudaram. Não há mais animais de estimação: eles sujariam a casa e a higienização custa bem caro. Sem água, perdemos o hábito de beber... Quem no passado imaginaria isso? Que bastaria nos acostumarmos a não sentir sede à custa de remédios. Só os velhos, como eu, os chamam de remédios! Os mais jovens chamam-nos “soluções”. Nada há de solúvel nas soluções, que são emplastros adesivos aderentes à superfície da pele. Há “solução” para a sede, para o banho e para uma infinidade de outras necessidades, mas volto ao assunto da água... __ Sinto saudades... Relembro copos, xícaras, mangueiras, seringas, chuveiros... Tudo parte de um passado recente.
Nosso organismo foi se adaptando à umidade absorvida pela respiração. De onde vem esta umidade? Uns dizem ser da transpiração; outros, que ela vem da chuva constante, fina e fedorenta que cai eterna. Não é água que chove, é uma chuva fina e espalhada, como poeira. Nada vive dela: nem nós! Eu e minhas lembranças... Transformei-me num ser noturno e nostálgico de minha antiga Terra e nada há de romântico nisso.
Os bebês... Eles não são mais carregados na barriga das mães. Nada de bolsa d’água! Eu fico pasmo com as mães modernas, que se enojam ao saber que antigamente seriam obrigadas a “aturar” o parto normal, os fluidos, os líquidos, o sêmen da vida! Elas sentem-se “confortáveis” por não menstruarem... __ Que vida! Conseguimos transformar nosso corpo humano de 70% de água para 30%. Invertemos nossa química. Roupas e sapatos são higienizados e “lavar” é verbo em desuso. Nossos rins são limitadíssimos e nem sei por que as crianças ainda nascem com eles. Nosso sangue depende de químicas, das tais “soluções” anticoagulantes. E é por isso que estou estarrecido com esta notícia aqui no jornal... Muitas delas são estarrecedoras __ é de praxe __, no entanto essa me chocou sobremaneira!
Leio e releio desacreditando: Um grupo de pesquisadores encontrou no caminho do Pico da Neblina uma fonte suspeita e atípica. Tal fonte era de água terrena antiga, embora impura e não potável. Continuo ávido em minha leitura para saber o que aconteceu com a água descoberta na fonte. Lamenta-se a intoxicação de dois jovens cientistas, membros da expedição, que por terem respirado dos vapores da água natural (é assim que denominamos a antiga água terrena, mais ou menos, como falávamos sobre a Era Medieval quando eu era jovem). A matéria relata que um dos cientistas entrou em coma e não resistiu à concentração de água natural e faleceu em menos de doze horas, apesar dos socorros imediatos e do tratamento intensivo de desidratação por que passou. A sonda (veículo) da expedição foi inutilizada, pois a umidade danificou o material por completo. Um alerta foi dado às Forças Armadas para que auxiliassem o aterro do local insalubre, de forma que toda a água natural fosse extinta do manancial encontrado. Uma nota do Superintendente de Controle Ambiental tranquiliza a população de que não há motivos para pânico, pois semelhante acidente ambiental é improvável de se repetir.
Sinto falta de umidade, da antiga umidade. Procuro uma solução... “Estava aqui há pouco tempo! Onde eu a deixei?” Uma ideia me surge e eu a acolho como quem acolhe um pombo mundano, sujo e desvalido. Desço até o terceiro andar (normalmente, vive-se no subsolo e o primeiro andar é o da superfície), sigo por um corredor até alcançar as escadas para o armário de guardados. Encontro velhos guarda-chuvas, livros feitos de papel, fotos (também de papel), remexo mais um pouco e encontro vinis, cestos de palha artesanais... Mas onde? Procuro e acho! Tão velha a garrafinha de água mineral gasosa francesa, coisa fina, que ganhei da chefe do departamento onde eu trabalhava. Ela é tão antiga quanto minha aposentadoria. A água decerto perdeu suas qualidades, ou evaporou em parte, que importa? Decido levá-la comigo ao meu quarto. Evito aspirar a umidade climatizada dos corredores, forçando-me a uma sede saudosa. Chego ao quarto, pego o jornal e relanceio a matéria sobre o Pico da Neblina... Lágrimas não me vêm aos olhos faz tempo! Sinto tontura e muita, mas muita vontade de chorar. Sou um ancestral de 80 anos de idade que quer algo natural, nem que seja a própria morte natural... “Isso!”. Destampo a garrafa. Ela ainda tem água, pouca, mas tem. A garrafa vazia... Eu cheio de líquido, água e vida. É noite...
*Cris Dakinis
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